Carlos Eduardo Elias de Oliveira[2]
EMENTA
Este texto defende a necessidade de permitir que os atos notariais e de registros sejam praticados de forma remota durante o período excepcional da pandemia, seguindo, com adaptações, as experiências do Estado de Santa Catarina e da França.
1. Introdução
Um dos serviços públicos mais importantes para as dinâmicas negociais e existenciais são os serviços notariais e de registro, popularmente conhecidos como cartórios.
Com a fé pública e com a função de depositário de informações relevantes para a segurança do mercado e de aspectos existenciais dos indivíduos, os cartórios são engrenagens que não podem ficar emperradas, sob pena de inviabilizar inúmeros negócios e atos jurídicos da sociedade.
Há inúmeros exemplos.
Para vender um imóvel ou para oferecer um imóvel em garantia, é necessário assinar uma escritura pública em um Cartório de Notas e, em seguida, levar esses papéis para registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Para cancelar um protesto de uma dívida – apesar dos esforços de virtualização –, ainda hoje é necessário que o cidadão vá pessoalmente à serventia pagar os emolumentos e assinar um termo requerendo a baixa da “negativação”[3].
Para obter o reconhecimento de firma em um documento (como em um contrato de locação ou em um documento de transferência de veículos), é preciso estar presente pessoalmente no Cartório de Notas, ainda que seja para apenas levar o documento físico (no caso de reconhecimento por semelhança).
Para registrar o nascimento de uma nova vida ou a despedida de outra, a presença física do oficial é fundamental para recepcionar documentos[4].
Para casar, é preciso entregar documentos pessoalmente e participar de uma cerimônia presencial[5].
Como se vê, inúmeros atos jurídicos (locação, vendas, registros de nascimento etc.) dependem da presença física de pessoas em serventias extrajudiciais, o que é absolutamente desaconselhável atualmente em razão da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19).
Neste breve texto, propomos uma medida urgente para que os cartórios sigam impulsionando a sociedade nessa catastrófica fase de pandemia causada pelo devastador inimigo microscópico.
2. Contexto atual
Nos atuais tempos de isolamento social e quarentena, quando, em 24 horas, alguns países se despedem eternamente de quase dois mil cidadãos vitimados pela Covid-19[6], a aglomeração de pessoas é ato de imprudência.
Às vezes, a prudência nos exige um passo para trás a fim de, depois, podermos dar vários outros para frente.
Prudência, porém, não é sinônimo de prostração!
A reclusão das pessoas não necessariamente precisa desandar na paralisação de todas as atividades econômicas, ainda mais na Era da Tecnologia e da Virtualização da Economia. Afinal de contas, inúmeros indivíduos também dependem da economia para obter o pão de cada dia.
No meio desse fogo cruzado, entre torpedos disparados pela Covid-19 e tiros desferidos pela recessão econômica, o ser humano – uma das criaturas mais hábeis do Planeta na arte de adaptar-se – precisa unir a prudência à criatividade para abater esses inimigos.
No presente texto, por meio da virtualização dos serviços notariais e de registro, podemos fortalecer as nossas trincheiras contra esses impiedosos adversários, pois, (1) ao tornar desnecessária a presença física de pessoas em serventias extrajudiciais, golpeia-se a pandemia e, (2) ao viabilizar a continuidade das atividades da fé pública, desfecham-se bombas contra a recessão econômica sem comprometer a segurança jurídica.
É claro que necessitaremos de outras armas, mas inegavelmente a que ora propomos neste artigo ajudará nesta guerra.
3. quadro atual dos serviços notariais e de registro para o período da pandemia
Não se desconhece a paulatina caminhada que o Brasil tem adotado na virtualização dos serviços notariais e de registro, a exemplo de várias normas nesse sentido (ex.: art. 1º, § 3º, da Lei de Registros Públicos – LRP[7] –, e arts. 37 e seguintes da Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida – LPMCMV[8], e Provimento nº 74/2018-CN/CNJ).
Apesar de tudo isso, o fato é que, na prática, em grande medida, os cartórios ainda não estão virtualizados.
Ainda hoje os cidadãos precisam pessoalmente ir aos Cartórios para assinar escrituras e requerimentos, para obter certidões[9], para protocolar documentos etc.
Desse modo, as severas restrições de atendimentos presenciais nos cartórios e de circulação de pessoas nas ruas por conta da pandemia dificultaram (ou até inviabilizaram) a prestação dos serviços notariais e de registro, o que significou uma brusca frenagem no funcionamento de vários mercados (como o imobiliário).
Por meio do Provimento nº 91, de 22 de março de 2020 – CN/CNJ[10], o talentoso Ministro Humberto Martins, na condição de Corregedor Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se esforçou em aliviar os transtornos daí decorrentes, determinando a cessação dos atendimentos presenciais e recomendando a utilização de formas de atendimento remoto na forma das normas dos tribunais locais até 30 de abril de 2020 (prorrogável por novo ato do Corregedor).
No mesmo sentido, os Provimentos nºs 93, 94 e 95 da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ reforçam essa tendência, atos que foram subscritos pela autoridade do Ministro Dias Toffoli.
Entretanto, esses atos normativos do CNJ – talvez por falta de respaldo legal expresso – não autorizou explicitamente a prática de todos os atos a distância, como a assinatura de escrituras públicas de modo remoto.
Na prática, em vários Estados, alguns cartórios, como os Tabelionatos de Notas, estão funcionando em forma de agendamento para viabilizar a assinatura de escrituras públicas. Outros, como os de Registro de Imóveis, estão aceitando o protocolo eletrônico de títulos para registro, como no Distrito Federal (em que o protocolo é feito pelo site da entidade representativa local[11]).
Em Santa Catarina, além dos atendimentos presenciais sob a forma de agendamento, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça foi mais avançada e autorizou a substituição da assinatura presencial nas escrituras públicas por meio de declarações feitas por videoconferência, caso em que o tabelião de notas fará a assinatura a rogo. Autorizou ainda o reconhecimento de firma de forma remota, além de ter disciplinado outras formas remotas para a prática de atos notariais e de registro (inclusive o casamento) e de ter permitido o parcelamento do valor dos emolumentos. Trata-se do formidável Provimento nº 22, de 31 de março de 2020 – CGJ/TJSC.
4. Proposta de disciplina temporária para os serviços notariais e de registro
A França, durante esse período de pandemia, já passou a permitir a “assinatura de escrituras públicas” de forma remota, conforme Decreto nº 2020-395, de 3 de abril de 2020[12].
A Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina, com admirável vanguardismo, também o fez, alcançando todas as especialidades extrajudiciais.
É tempo de, por lei federal, essa experiência de atendimento remoto se espalhar para todo o país, especialmente porque, sem um respaldo legal expresso, atos normativos arrojados como o de Santa Catarina ficam vulneráveis a possíveis impugnações judiciais.
Ora, atualmente, já praticamos relevantíssimos atos jurídicos sem a presença física pessoal.
Por exemplo, sem qualquer prejuízo à segurança jurídica, conseguimos abrir contas bancárias sem estar presente fisicamente em uma agência. Basta o envio de documentos digitalizados por e-mail ou por outro canal de comunicação eletrônica disponibilizado pela instituição bancária. Não há necessidade de uso de assinaturas eletrônicas com tokens expedidos no âmbito da ICP-Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira)[13]. Aliás, atualmente já são bem populares os bancos virtuais (fintechs), que não possuem agências físicas. O próprio Banco Central, por meio da Resolução BACEN nº 4.753, de 26 de setembro de 2019, dá essa liberdade às instituições bancárias.
Nos tempos atuais, também conseguimos fazer movimentações financeiras milionárias pelo celular, por e-mail ou pela internet. É o caso, por exemplo, das compras de ações e de outros títulos mobiliários negociados na Bolsa de Valores por meio de um canal de comunicação eletrônica disponibilizado por uma corretora. Para abrir uma conta na corretora ou para realizar qualquer operação, não há necessidade alguma de presença física nossa. Tudo é feito por canal de comunicação eletrônica, sem burocracias adicionais e sem uso de assinaturas eletrônicas no âmbito do ICP-Brasil.
É, pois, anacrônico exigir presença física do cidadão para cancelar um protesto, para assinar uma escritura pública ou para praticar outros atos notariais e de registro.
Por essa razão, convém admitir que a prática remota de todos os atos notariais e de registro, com exceção, por ora, apenas do testamento em razão de suas sensibilidades, da admissibilidade de testamento particular e de não se tratar de ato corriqueiro.
A assinatura presencial pode ser seguramente substituída pela manifestação de vontade por meio de plataformas virtuais de videoconferência e pelo envio de cópias digitalizadas de documentos, assegurado ao registrador ou ao tabelião, no caso de fundada dúvida, exigirem a presença física das partes.
Em termos de riscos de fraudes, não vemos qualquer incremento. No modelo presencial atual, também há riscos de fraudes por meio de atos praticados por procurações fraudulentas ou por meio da apresentação de documentos falsos. Esses riscos talvez sejam até reduzidos com o uso de plataformas virtuais, pois o tabelião ou o registrador, ao ter suspeitas, pode buscar entrar em contato com a parte por meio dos seus dados cadastrais.
A experiência catarinense merece ser espraiada para todo o País, com apenas um detalhe: é fundamental que, no caso de Cartório de Notas, a assinatura de escrituras públicas de modo remoto só seja admitida na serventia de domicílio de qualquer dos interessados ou da situação da bem. É que, além de essa serventia ter maior facilidade para apurar eventuais fraudes por estar mais próximo geograficamente das partes (e ter acesso aos órgãos locais de segurança pública), a territorialidade evitará concorrências predatórias entre os tabelionatos de notas de outras cidades.
5. Conclusão
Inspirando-se na experiência francesa, convém, por lei federal, respaldar a vanguarda disciplina esculpida pela Corregedoria-Geral de Justiça da Corte de Santa Catarina para a prática remota de atos notariais e de registro, com uso, quando necessário, de meios virtuais de videoconferência.
No caso, porém, de tabelionatos de notas, para evitar concorrências predatórias e para facilitar diligências nos casos de suspeitas de fraudes, impõe-se restringir a competência territorial das serventias de acordo com o domicílio das partes ou o lugar de situação do imóvel[14].
Recomenda-se também que os testamentos não sejam abrangidos pela possibilidade de assinaturas remotas, até porque não se trata de ato corriqueiro e porque o ordenamento jurídico não exige necessariamente escritura pública para esse negócio jurídico.
Outrossim, é imperioso autorizar que os cartórios funcionem fora do horário regulamentar[15], de modo que este seja apenas um horário mínimo. É que a prática de atos eletrônicos, como o envio de documentos, deve ser autorizada em qualquer horário do dia.
Igualmente, é de bom tom autorizar o parcelamento dos emolumentos, com eventual cobrança de juros, nos termos de ato do Tribunal local, tudo de modo a colaborar com o cidadão que está enfrentando a crise financeira.
Essa lei, num primeiro momento, deve se restringir ao período da pandemia por conta da urgência, mas, após vencermos a guerra contra o inimigo invisível, o Brasil poderá consolidar essa experiência de virtualização dos atendimentos dos cartórios com eventual retoque que vier a ser considerado necessário.
Enfim, em meio à impiedosa epidemia, é dever de todos prosseguirem, ainda que cambaleantes, para enfrentar esse adversário, pois, como ensinava a imortalizada Elis Regina, “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”.
Abril/2020
[1] Agradecemos ao enciclopédico professor e tabelião Hércules Alexandre da Costa Benício pela gentil disponibilidade em compartilhar conhecimento. O presente artigo foi publicado em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins-legislativos/bol83.
[2] Consultor Legislativo do Núcleo de Direito, Área de Direito Civil, Processo Civil e Agrário e Professor de Direito Civil e Registros Públicos na Universidade de Brasília (UnB), no Instituto de Direito Público (IDP/DF) e em outras instituições.
[3] Não desconhecemos o art. 5º do Provimento nº 87, de 2019, que admite pedido de cancelamento de protesto pela internet. Todavia, sabemos que, na prática, há ainda serventias ainda que exigem presença física.
[4] Não se desconhece o Provimento nº 93, de 2020 – CN/CNJ, que admite a apresentação eletrônica dos documentos.
[5] O Projeto de Lei nº 1.627, de 2020, da Senadora Soraya Thronicke, atenta para a necessidade de flexibilizar.
[6] Caso dos EUA: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/08/eua-tem-quase-2-mil-mortes-por-coronavirus-em-24-horas.htm.
[7] Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
[8] Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.
[9]Sabe-se que, em alguns Estados, tem-se esforçado por disponibilizar certidões on-line, mas isso não é generalizado no País e não alcança todas certidões.
[10] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Provimento-91.pdf.
[11] A propósito, consta este aviso no site (disponível em: https://www.registrodeimoveisdf.com.br/home):
CARTÓRIOS DO DF – COMBATE AO CORONAVÍRUS
- Os cartórios do DF atenderão os casos urgentes, em regime de plantão, até 30/04/2020.
- Em www.anoregdigital.com.br, peça certidão de nascimento, casamento, óbito, protesto e ônus de imóvel.
- Em www.cartoriosdeprotestodf.com.br, faça o serviço de protesto: envio de título,
cancelamento, certidão. - O serviço de registro de óbito funcionará nos postos em hospitais e no IML.
- Havendo urgência para outro serviço (testamento, escritura, procuração, registro de
nascimento, de registro de imóveis), consulte o e-mail ou telefone do cartório
em www.tjdft.jus.br/informacoes/extrajudicial/serventias-extrajudiciais, escolha o cartório
e peça um agendamento, justificando a urgência.
[12] Décret n° 2020-395 du 3 avril 2020 autorisant l’acte notarié à distance pendant la période d’urgence sanitaire
(…)
Le Premier ministre,
Sur le rapport de la garde des sceaux, ministre de la justice,
Vu le code civil, notamment ses articles 1363 à 1371 ;
Vu la loi du 25 ventôse an XI modifiée, notamment son article 67 ;
Vu la loi n° 2020-290 du 23 mars 2020 d’urgence pour faire face à l’épidémie de covid-19, notamment son article 4 ;
Vu le décret n° 71-941 du 26 novembre 1971 relatif aux actes établis par les notaires;
Vu le décret n° 2017-1416 du 28 septembre 2017 relatif à la signature électronique;
Le Conseil d’Etat (section de l’intérieur) entendu,
Décrète:
Article 1 En savoir plus sur cet article…
Jusqu’à l’expiration d’un délai d’un mois à compter de la date de cessation de l’état d’urgence sanitaire déclaré dans les conditions de l’article 4 de la loi du 23 mars 2020 susvisée, le notaire instrumentaire peut, par dérogation aux dispositions de l’article 20 du décret du 26 novembre 1971 susvisé, établir un acte notarié sur support électronique lorsqu’une ou toutes les parties ou toute autre personne concourant à l’acte ne sont ni présentes ni représentées.
L’échange des informations nécessaires à l’établissement de l’acte et le recueil, par le notaire instrumentaire, du consentement ou de la déclaration de chaque partie ou personne concourant à l’acte s’effectuent au moyen d’un système de communication et de transmission de l’information garantissant l’identification des parties, l’intégrité et la confidentialité du contenu et agréé par le Conseil supérieur du notariat.
Le notaire instrumentaire recueille, simultanément avec le consentement ou la déclaration mentionnés au deuxième alinéa, la signature électronique de chaque partie ou personne concourant à l’acte au moyen d’un procédé de signature électronique qualifié répondant aux exigences du décret du 28 septembre 2017 susvisé.
L’acte est parfait lorsque le notaire instrumentaire y appose sa signature électronique sécurisée.
Article 2 En savoir plus sur cet article…
Les dispositions du présent décret sont applicables dans les îles Wallis et Futuna.
Article 3 En savoir plus sur cet article…
La garde des sceaux, ministre de la justice, est chargée de l’exécution du présent décret, qui sera publié au Journal officiel de la République française.
Fait le 3 avril 2020.
Edouard Philippe
Par le Premier ministre:
La garde des sceaux, ministre de la justice, Nicole Belloubet”
[13] A ICP-Brasil foi instituída pela Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.
[14] Quando se tratar de negócios relativos a imóveis, o ideal é que, para assinaturas virtuais, só deveria ser admitido cartório de notas do local do imóvel. Entretanto, para esse período temporário da pandemia, como se trata de uma primeira experiência de restrição territorial da livre escolha dos tabeliães de notas (art. 8º, Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994), o mais adequado é admitir a competência dos cartórios de domicílio de qualquer das partes ou do lugar do imóvel, pois esses cartórios de notas costumam ser os escolhidos na prática. Futuramente, essa opção temporária pode ser objeto de reflexão mais aprofundada.
[15] O art. 4º, § 2º, da Lei nª 8.935, de 1994, trata do horário regulamentar.